Na Margiela, o outono vem apontar fortes mudanças: uma revolução!?
Façam-se minhas as palavras emprestadas da trilha sonora do desfile mais maduro e pessoal de John Galliano a frente da Maison Margiela em quase uma década de direção da casa.
_ Do rastro de pólvora deixado pela explosão de “Cinema Inferno”, última exibição teatral da coleção Artisanal [haute couture] da Maison Margiela em 2022, é que Galliano retorna à sua saga fabulosa em 2023 com a coleção Co-Ed no pronto para vestir [aka ready to wear] da marca. Um dos últimos dos românticos da moda, junto a nomes como Marc Jacobs e Dries Van Noten, surpreende nesta que é uma coleção de composição de imagem de moda robusta, complexa e meticulosa.
_ É sem dúvida alguns dos trabalhos de styling mais preciosos que vimos na moda nos últimos tempos. Em uma passarela asséptica e semi-semi-espelhada [translúcida?], não há tempo a perder [literalmente]. Da fantasia gallianesca, seus personagens quase correm em uma caminhada rápida e cheia de atitude portando composições que mesclam do folk ao punk, em um jogo de referências primordialmente das décadas de 1950 e 1980, mas não só destas. Assistindo ao desfile, é como se os jovens personagens estivessem atrasados para chegar em algum club frequentado por cool kids que se arrumaram em pouco menos de dez minutos na noite fria de alguma metrópole badalada.
_ Sendo isso ou não, o que é evidente é a importância do movimento para funcionamento da imagem [não à toa o ensaio e disposição de coleção] junto a cacofonia presente em todos os looks na maioria de seus atributos: texturas, estampas, acessórios, costuras, etiquetas, e não vamos esquecer dos acessórios de cabeça que são verdadeiros acontecimentos [de certa dose de humor] em saco de lixo, tule e cia. Sarcasticamente [mas nem tanto], “this is the future” [isso é o futuro] ecoa na trilha sonora diversas vezes. Fica o questionamento se isto se refere à imagem que está sendo mostrada, a primorosa exploração do conceito de vestir, ou à ironia de que não teremos sequer tempo de constar panfletos anexados às nossas calças nas correrias futuras [ou porque não, tudo isso junto].
_ A história de amor dramática contada em “Cinema Inferno” parece ter uma continuação menos teatral mas, não menos dramática no fazer da passarela desta edição. Ao mesmo tempo que o carro do antigo casal couture parece ter voado um despenhadeiro e o resultado da sobrevivência ter sido o que vimos neste desfile [como se fossem glamourosamente saídos desse acidente], também parece que a trama ganha uma outra geração neste desfile: nostálgica para muitos, futurista para outros e para alguns tudo junto e misturado.
_O que não é surpreendente vista a profusão de camadas [muitas e muitas], formas e técnicas que são expostas na coleção de forma a resgatar o imaginário de formação do próprio Galliano em uma Inglaterra do fim do século XX, conectada a contraculturas que remontam o fim do século XVIII acenando para um imaginário estadunidense hollywoodiano em ápice de sua exportação em meados do século XX. Todo esse universo de referências parece estar amalgamado nos looks da coleção junto à mode Margiela do ateliê de fazer roupas, o que é definitivamente algo de se impressionar visto a complexidade e o tempo recorde de laboratório para essa realização.
_ No entanto, é possível considerar que um dos desfiles mais fortes e emblemáticos de Galliano para Margiela também marca uma fratura nos códigos da marca, uma vez que, desde que a assumiu, nunca se viu tanto o peso da herança de Galliano [seja nas referências britânicas de estilo, superfície, e de design, até ao trejeito “dior-esco afrancesado” dos modelos] na passarela da marca belga. Ainda sim, é evidente que um designer experiente como Galliano não iria buscar sobrepor totalmente os códigos da marca que aparecem transbordando na técnica de fazer a roupa alcançando um diálogo entre “isso não é comum à Margiela” mas ao mesmo tempo “isso é Margiela”. É facilmente notável o respeito do designer britânico com a perpetuação da herança belga que dá à marca o reconhecimento que sempre teve.
_ Neste diálogo entre titãs do mundo da moda, o designer Galliano e a marca Margiela, acompanhamos fases. Quando assumiu e mesclou sua assinatura com os códigos da marca, eu prontamente chamei o que vi de “Margielliano”. Contudo, consideremos que este é um mix que aparentemente já ficou para trás [uma fase fundamental de aprendizado talvez? um início de relacionamento?]… O que vemos agora é uma dissonância positiva entre ambos que vai gerar de fato os “anos Galliano dentro da Margiela”, assim como os anos Margiela na Hermès, ou os anos Galliano na Dior e tantos outros anos com nome de designers que vimos na moda como parte memorável a herança de certas casas de moda. É a constituição de mais um capítulo importante da história da moda.
_ [This is the future?]
_ Este é um caminho que têm início quando o designer assume para si sua própria fantasia e a realiza conforme os métodos e códigos da marca. “Cinema Inferno” não foi a primeira fantasia a ser realizada por Galliano dentro da marca [vide outras contadas pelo designer em outras temporadas], desde a reclusão da pandemia vimos algo escalando nesse sentido quando a exploração do audiovisual pela casa foi algo particularmente marcante. No fim do dia, é ótimo que as narrativas do designer tenham fruição [e, claro, coerência] com a marca. Afinal, no coração de uma marca iconoclasta por excelência é fundamental que alegorias e desejos particulares se realizem.
_ Abaixo, você pode conferir na íntegra o vídeo da coleção.